BNCC E OS DESAFIOS DAS ESCOLAS
- Paulo Roberto Padilha
- 7 de ago. de 2019
- 19 min de leitura
Atualizado: 25 de ago. de 2019
Quais impactos terá a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) nas nossas escolas e na nossa vida? Quais os principais desafios a serem enfrentados para que as unidades educacionais do país atualizem os seus currículos, respeitando tanto as suas experiências curriculares, como as normas apresentadas na BNCC?
Como educador, sempre considerei importante a existência de Diretrizes Curriculares Nacionais que servissem de referência para todo o país, mas que não fossem totalitárias, unificadoras e que respeitassem as características históricas, culturais, econômicas, educacionais, ambientais e locais. Isso garantiria o respeito às diferenças regionais e, ao mesmo tempo, a existência de uma certa unidade nacional, permitindo a escolarização de crianças, jovens, adultos e idosos, e o direito deles ir, vir e viver, em qualquer estado da federação, sem prejuízos aos seus estudos. Após 30 anos de magistério, e estudando a história da educação no Brasil há mais de 40, nunca encontrei nada que me satisfizesse realmente e que desse conta disso. Esta é, infelizmente, a nossa realidade educacional, sobretudo agora que passamos a ter uma Base Nacional Comum Curricular.
Por outro lado, esforços não faltaram. Um exemplo conhecido vem do Manifesto dos Pioneiros a Educação Nova de 1932, produzido por 26 educadores da então elite intelectual do país, durante o Governo Getúlio Vargas, mas que, mesmo com suas diferenças ideológicas internas, buscavam uma sociedade mais justa, via educação e, por isso, uma escola única, pública, laica, obrigatória, gratuita e integral, diferente do que acontecia até então, por conta da primazia da igreja na educação das crianças e jovens e da existência de uma educação tradicional e altamente conservadora, principalmente a escola publica, já que a elite, como sempre aconteceu, reservava para si outras formas de educar seus filhos – inclusive, estudando fora do país – como, aliás, segue acontecendo hoje.
De lá para cá, nos diferentes Planos Nacionais de Educação elaborados no país, eles nunca foram efetivamente concretizados, até porque os planos poucas vezes contaram com a efetiva participação popular na sua elaboração e, tampouco, nunca se destinou recurso suficiente para a educação, que pudesse dar conta das demandas educacionais existentes. A educação nunca foi prioridade em nosso país, salvo exceções localizadas em alguns governos municipais, de caráter mais democrático e popular, sobretudo em nossa história mais recente. Ou então no contexto de programas especiais de algumas gestões governamentais e, mesmo assim, pouco contando com educadores(as) e educandos, na hora de se decidir as prioridades. Interessante observar: quando houve consulta popular, às vezes por vários anos, na calada da noite os legisladores, “impulsionados” pelo poder executivos de então, acabaram aprovando leis (como foi o caso da própria LDB 9394/96), com mais ranços do que avanços, desprezando debates e discussões de vários anos. Nesse sentido, vale ler o livro intitulado LDB 9394/96 – Ranços e Avanços, do professor Pedro Demo (Papirus, 23a ed., 1997).
Compreendemos que diretrizes ou parâmetros curriculares nacionais são apenas referências para a educação, e aprendemos com elas, até as valorizamos. Tivemos nos últimos 30 anos, após a Constituição Federal Brasileira de 1988, algumas tentativas de estabelecer Planos Nacionais e Diretrizes e Parâmetros Curriculares que apresentavam ênfases na educação de qualidade – sem contudo, explicitarem de que qualidade estavam falando – exceção feita à experiência do PNE 2014-2024 que, inclusive, estabeleceu o Custo Aluno- Qualidade Inicial (CAQi) e o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) – vide: http://www.custoalunoqualidade.org.br/o-que-e-caqi-e-o-caq. Entretanto, chegamos, após os anos 90, a falar em “educação de qualidade social”, ao tratar de currículo – o que já significou novidade satisfatória quando associávamos à palavra qualidade, o adjetivo “social”. Para mim nunca bastou este adjetivo. Sempre defendi e ainda defendo a “qualidade sociocultural e socioambiental da educação” - o que explico, em parte, no meu livro “Educar em Todos os cantos” (2007; 2012). Ver: PADILHA, Paulo Roberto. Educar em Todos os Cantos: por uma educação intertranscultural. São Paulo, Cortez, 2007; Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, São Paulo, 2012).
A BNCC tem de positivo o fato de ter estimulado o debate inicial em torno da questão curricular, mas tem contra si o fato de ter abandonado o mesmo por conta da urgência de se ter um documento aprovado, no contexto do fim de um governo centralizador, conservador, pessimamente avaliado, considerado golpista por mais da metade da população do país, e por ter abandonado grande parte das discussões realizadas sobre a BNCC e as consultas feitas para que ela fosse, de fato, representativa de um debate nacional. Durante sua fase “final” de elaboração – consultas fechadas, virtuais, sem maiores possibilidades de diálogos, foram realizadas, mas pouco contribuíram, após o que a Base virou norma, Lei que agora deve ser cumprida, além de, certamente, ser a referência para a liberação de recursos para as escolas de todo o país, dependendo do cumprimento, ou não, do que a BNCC estabelece. Historicamente foi assim e, agora, sobretudo no contexto de um novo governo retrógrado e ultra-conservador, não será diferente.
Lei não se discute: cumpre-se. Contudo, em sua própria estratégia de implantação – e ainda bem – há certa “flexibilidade” para ajustes locais da Base – outra característica positiva da BNCC, que se deve aproveitar. Mas devo reiterar que a Base foi, na verdade, feita e concluída sem a devida participação e consulta à base: uma Base sem consulta à base.
Outro aspecto importante a destacar, são as “dez competências gerais” - páginas 9 e 10 da BNCC, com as quais há, se não total, grande concordância com as mesmas – exceto o fato de que considero mais adequado falarmos em “princípios e valores” - ou então em eixos, do que em “competências” - palavra com múltiplos sentidos mas que, fica-me sempre a sensação de “capacidade, competição, habilidade” - por mais que outros sentidos possamos se associar esta palavra. Vejamos, então, estas “dez competências da educação básica”, que aqui apresento. Vejamos as dez competências gerais:
1. Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.
2. Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.
3. Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural.
4. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo.
5. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.
6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade.
7. Argumentar com base em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta.
8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas.
9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades,
sem preconceitos de qualquer natureza.
10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários.
Difícil não haver consenso em relação a estas “dez competências”, mesmo que a própria LDB 9394/96, o Plano Nacional de Educação 2014-2024 e as Conferências Municipais, Estaduais e Nacionais que a antecederam, não falem de competências (visão tecnicista – utilizada nos anos 70, da Ditadura Militar), mas em “direitos e objetivos de aprendizagem – terminologias e práticas muito mais adequadas numa concepção de educação democrática, humanizada e transformadora.
O que define a qualidade de ensino na BNCC será o aproveitamento nas avaliações gerais e nacionais – patronizadas, unificadoras, a partir de uma concepção conteudista (via habilidades) meritocrática (via avaliação padronizada), com pouca autonomia para o professor (por serem tão analíticas as propostas de conteúdo e avaliação) e que, por isso mesmo, negam o caráter democrático, participativo, inclusivo e justo que aparece nas dez competências acima. Certamente, todas as escolas estão preocupadas sobre como e o que fazer para se adequar à BNCC. É o tema do momento, sem dúvida. Mas devemos ter calma e refletir sobre o que temos, o que já fazemos, e o que queremos fazer na nossa escola e na nossa educação, para também nos fortalecermos esse processo, agora submetidos à normatização da BNCC, que tem por característica partir de uma concepção seriada, que nega os próprios avanços da LDB – por exemplo, no que ela flexibiliza em relação aos ciclos de aprendizagem e não apenas à seriação.
CURRÍCULO ESCOLAR, CURRÍCULO DA ESCOLA E A BNCC: POR ONDE COMEÇAR?
Estamos aqui preocupados com a relação entre o currículo escolar, com o currículo da escola e sua relação com a BNCC. É uma questão complexa pois, ao mesmo tempo que é lei, por outro lado resulta de um processo que afirma uma concepção de educação e de currículo ultra-conservadores, tecnicistas, que acabem colocando sob sério risco a luta de tantos anos por uma emancipadora, Educação Cidadã, e, inclusive, por uma Escola Pública Popular, com a qual vimos sonhando. Por isso mesmo, é que quando pensamos “por onde começar”, devemos enfrentar o desafio de frente, acreditando nas experiências dos professores, das professoras, dos(as) estudantes e das comunidades escolares que, historicamente, têm resistido como podem às imposições de políticas públicas educacionais que são contrárias aos interesses públicos e as propostas, padrões, referências, parâmetros e sugestões de bases curriculares que negam os interesses da “base”.
Nesse sentido, vejamos primeiro as nossas possibilidades e, depois, como podemos lidar com os cuidados diante dos desafios e dos riscos de retrocessos. Claro, algumas sugestões e orientações possíveis, que exigirão aprofundamentos no contexto de nossos futuros diálogos e práticas escolares.
Em primeiro lugar, devemos entender que o currículo escolar (o instituído) e o currículo da escola (o instituinte, que está sendo vivenciado), não começam nem terminam pela discussão do tema currículo, nem da própria BNCC. Digo isto porque o currículo deve ser o processo e o resultado de um percurso, que começa num ponto de partida bem específico. Explico melhor: nosso ponto de partida para discutir o currículo, para além de todo o aparato legal ou regimental da educação brasileira – e até mesmo por não poder negá-lo, pois é lei, são as pessoas, as relações que elas estabelecem entre si e com o mundo, diante do desafio de organizar o projeto eco-político-pedagógico da escola, sua proposta pedagógica, seus planos de ação e, portanto, considerando um movimento participativo e dialógico de planejamento escolar.
Será esta relação inicial que estabelecerá a necessidade e o sentido verdadeiro da gestão democrática da unidade educacional, gestão esta, que pressupõe a autonomia da escola, mas que também é negada, na prática, pela análise das “competências” e das “habilidades” da BNCC – pois lá, o que avaliará as aprendizagens dos(as) alunos(a) no final das contas, será o resultado de avaliações externas, hierarquizantes, avaliação nacional, única, sem respeito às diferenças e à autonomia das escolas, como já mencionei.
A gestão democrática não consta do “currículo” da BNCC. Mas precisa constar. Ou seja, independentemente da BNCC, a escola, que deseja um currículo realmente inclusivo não prescindirá de ações voltadas à discussão do conceito e da prática da gestão democrática, do exercício da cidadania desde a infância, do fortalecimento de cada segmento escolar, dos colegiados escolares e das decisões participativas em torno do projeto e do currículo da escola.
Nesse sentido, temos acumulado experiências que denominamos “Reorientação Curricular nas escolas – Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação de Jovens, Adultos e Idosos, na perspectiva da Escola ou da Educação Cidadã. O início do processo acontece, como já disse antes, pelo diálogo entre as pessoas e destas com o mundo, com a leitura do mundo organizada democraticamente em eixos educacionais, a partir de princípios de convivência, de valores e referenciais prático-teóricos de aprendizagem ativa e significativa, no contexto de “Círculos de Cultura”, Por isso, trabalhamos com os seguintes princípios, valores e experiências (vide meu livro Currículo Intertranscultural – São Paulo, Cortez/IPF, 2004 – PDF disponível neste site).
I – Relações Humanas e de aprendizagem – valorizando as relações interpessoais e intertransculturais entre as pessoas, entendendo por intertransculturalidade a criação de espaços de diálogos que mobilizam a emoção, a razão, a sensibilidade, a afetividade, as artes e as ciências para que, juntos, se conheçam sujeitos históricos, culturais e que, portanto, reconhecem, valorizam e convivem respeitosamente com as suas diferentes diferenças e múltiplas semelhanças. Dá-se o conhecimento da realidade, do real, das culturas, lendo o mundo e interpretando o mundo coletivamente.
II - Gestão democrática e parcerias comunitárias e sociais – Envolve a gestão sociocultural e socioambiental da unidade escolar, em diálogo com a comunidade local, fortalecendo a gestão democrática, combinando experiências de participação comunitária na gestão dos interesses e do patrimônio público, com ênfase às aprendizagens participativas de todos os segmentos escolares. E tais aprendizagens são partes constitutivas fundamentais do currículo, o que não acontece numa gestão autocrática, conservadora e puramente legalista.
III – Gestão sociocultural das aprendizagens – Representa a ressignificação das aprendizagens na escola e a filtragem das informações para que estas possam se transformar em processos de (re) construção do conhecimento a partir da escola e da comunidade escolar. Trata-se do aprofundamento das questões demandadas pelas escolas, para além das convencionalidades e dos limites até agora estabelecidos (por exemplo, pelo conteudismo, pelas habilidades ou competências), seja no que se refere às relações humanas, seja no que se refere às diferentes multidimensionais manifestações do conhecimento, do saber e dos aprenderes do ser humano.
IV – Avaliação dialógica continuada e formação humana – para além de avaliações externas globalizantes e hierarquizantes; refere-se à avaliação permanente, processual, continuada, institucional, geral e específica. E combinada à necessária formação continuada dos(as) professores(as).
V – Projeto eco-político-pedagógico da escola – trata-se da educação enquanto princípios diretrizes e propostas de ação, fundados no diálogo, na ecologia, na ecopedagogia, na ética, estética, sensível, científica, criativa, crítica e transformadora. Projetar como pensar o futuro a partir do conhecimento profundo da realidade, das demandas sociais, da “Felicidade Interna Bruta” (FIB), dos valores humanos e da educação em direitos humanos. Planejar com base na Leitura do Mundo.
Estes eixos devem ser a referência central para a Reorientação Curricular à qual nos referimos, da Educação Infantil ao Ensino Médio, passado pela Educação de Jovens e Adultos, pela Formação Profissional, Tecnológica, Artística e, certamente, científica.
Em diálogo com o que já temos estudado na escola, com o currículo que ela já pratica, e com a participação ativa e processual de todos os segmentos escolares, organiza-se todo um trabalho de reorientação curricular com base nos seguintes princípios, valores e orientações práticas, que serão levados em conta quando da definição do currículo da escola (o que estamos vivenciando na vida cotidiana da escola, o currículo “instituinte”), também a partir do currículo escolar (as normas, as determinações e o que já está instituído na e para a escola – suas normas, seus costumes, práticas, projetos exitosos, projetos não exitosos, outras experiências – ou seja, o currículo “instituído).
Como entendemos, é aí, ou aqui, que entra a BNCC, como uma norma, ou uma determinação, que deve ser considerada, estudada e analisada, mas com o cuidado para que as inúmeras “competências e habilidades” nela previstas, não condicionem o currículo da escola, suas metodologias de ensino que devem ser ativas e significativas, nem tampouco as avaliações a serem implementadas e praticadas na escola.
Uma reorientação curricular que parta das experiências da escola, do projeto que ela já tem, ou que está atualizando, tendo por referência viva a sua proposta pedagógica para cada curso ou período, e do diálogo permanente da comunidade escolar sobre o seu currículo, não terá dificuldades, desde que traçados objetivos, metas, indicadores de qualidade socioculturais e socioambientais da educação, de dialogar com a BNCC, fazendo os necessários filtros e tendo alguns cuidados para evitar cair na teia de uma Base que se construiu sem efetivamente dialogar com a base, como disse antes.
CONHECER PARA TRANSFORMAR
Não é possível transformar sem conhecer, nem planejar sem “ler o mundo”, o que dá na mesma. Portanto, diante do necessário desafio de analisarmos a BNCC e, no processo de elaboração do Projeto Eco-Político-Pedagógico da Escola, de todas as suas etapas, até a definição de um Plano de Ação com objetivos, metas, indicadores de qualidade sociocultural e socioambiental da educação e de uma avaliação dialógica, continuada, formativa e ascendente, fará parte de todo processo de reorientação curricular, um conhecer profundo e processual da BNCC. Até por isso, importante é realizarmos, a partir do movimento e dos princípios e práticas acima sugeridos, as as críticas já existentes à atual Base Nacional Comum Curricular. Diálogos coletivos, críticos, participativos, com os(as) docentes, com os vários segmentos escolares, com as coordenações das Secretarias de Educação Municipais e Estaduais para que, a partir daí, possamos dar continuidade ao nosso movimento de Reorientação Curricular.
Até 2016 havia, na sociedade educacional brasileira, num contexto do acompanhamento das metas do Plano Nacional de Educação (2014-2024) e da discussão de uma “Base Comum Nacional”, com a participação ativa de educadoras e educadores de todo o país, um clima de otimismo e de movimentos participativos e educadores e educadoras. Isso acontecia por conta das várias Conferências Municipais, Estaduais e Nacional de Educação (CONAEs), dos vários Fóruns Mundiais de Educação, dos quais participávamos ativamente, bem como do trabalho da Campanha Nacional de Educação, entre outras importantes lutas e iniciativas que visavam ao fortalecimento da educação nacional. A luta era pela defesa da Educação Cidadã.
Nós, que desde a década de 90 lutamos pela Escola Pública Popular e Escola Cidadã, sempre associada à garantia dos direitos humanos e à educação em direitos humanos, acompanhamos de perto todo esta movimentação, até que veio o impeachment da presidenta eleita Dilma Roussef. Após isso, forças neo-conservadoras da sociedade brasileira – por razões que hoje compreendemos ainda mais, inclusive pelos métodos utilizados – que acompanhamos hoje pela imprensa alternativa nacional e internacional -, que colocaram e seguem colocando em risco o Estado Democrático de Direitos, o Governo Temer assumiu a coordenação do que veio a se chamar, posteriormente, de “Base Nacional Comum Curricular”. Esta normatização resultou de consultas e diálogos sobre a Base Comum Nacional interrompidos, substituídos por consultas apressadas para aprovar, a toque de caixa, antes do fim daquela gestão Temer, a BNCC.
Como sabemos, pela recentíssima história, a concepção de educação e de currículo, que antes visava à formação cidadã e ao exercício da autonomia, pelas crianças, jovens, adultos e idosos, que afirmava a educação humanista, crítica, política e transformadora, respeitosa às diferenças e à diversidade cultural, passou a ser negada, desconsiderando os saberes locais e a fortalecendo uma visão conservadora, tecnicista, além do mais grave ainda: uma avaliação padronizada e única para todo o país, alimentando a indústria do livro didático, dos sistemas de ensino, do apostilamento desenfreado que tira dos(as) professores(as) as suas autonomias pedagógicas.
Trata-se da busca infindável de lucros com a educação, mas não apenas isso. A nova BNCC, não tenhamos dúvidas, fortalece os interesses das fundações e empresas privadas, a mercantilização da educação (a “mercoescola”) para acabar de vez com a educação e com a escola pública, ao condicionar recursos para elas, submetidas a um financiamento fruto de suas avaliações hierarquizantes, padronizadas e meritocráticas, que alimentarão ainda mais a indústria do livro didático no pais, com sempre aconteceu, mas sucateando ainda mais a educação pública e tornando a escola pública ainda mais vulnerável. Trata-se de um verdadeiro massacre da Educação pública no Brasil.
Leia-se: quando falo “sucatear a educação pública” estou afirmando que tudo na vida cotidiana da escola, que pode ganhar as redes de ensino do país. Todos são prejudicados: o cerceamento do trabalho docente e o fim dos direitos trabalhistas, com o respectivo sucateamento salarial, a falta de formação continuada para os diversos trabalhadores em educação, a falta de recursos públicos para materiais, despesas de custeio, para equipamentos, para a informatização das escolas, impedindo que as unidades educacionais tenham acesso às tecnologias da comunicação e da informação, como já acontece nas escolas privadas do país. Como nunca se dá e se dará o enfraquecimento da escola pública.
Não é demais lembrar da que o então Presidente Interino, Michel Temer, conseguiu que o Congresso Nacional – o mais conservador de todos os tempos no Brasil – aprovasse, a “PEC da Morte”, ou seja, a PEC 241/2016, que congelou os gastos públicos por 20 anos, atingindo sobretudo a educação, a saúde e a cultura, para que sobrassem recursos para pagamento da dívida pública do governo federal, que consome quase 50% do orçamento do país – e sabemos que maioria desta dívida com os grandes brancos privados. Claro que esta é uma tendência desta capitalismo não democrático que é comandado pela grandes corporações internacionais. nesse sentido, vale ler “A era do capital improdutivo - A nova arquitetura do poder: dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta”, do professor Ladislau Dowbor. (São Paulo, Autonomia Literária, 2017). Vide também o ótimo site deste autor: www.dowbor.org. PDF gratuito do livro em: http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2012/06/a_era_do_capital_improdutivo_2_impress%C3%A3oV2.pdf
Evidentemente que não estou falando apenas de uma responsabilidade da BNCC, mas de uma política nacional de educação, submetida à lógica neo-conservadora que hoje domina o mundo, que, por sua vez, bebe na fonte do ideário neoliberal contemporâneo, que está acabando, no Brasil e em quase todo o planeta, com o próprio capitalismo democrático. Vivemos novos tempos, muito complexos, bastante difíceis, que nos exigem coragem, sabedoria, paciência-impacienta, resistência, trabalho e, sobretudo, esperança sem espera. Sem esperança não avançaremos. E, diante do medo, que é um sentimento natural e concreto, que temos, cabe afirmar e lutar com ousadia, como escreveu Paulo Freire – a que eu acrescento: com muita criatividade, visando à vida pacífica, que só pode ser afirmada pela justiça social e pela dignidade humana.
Para fundamentar os argumentos acima, relacionados à BNCC, é importante resgatar a apresentação da publicação intitulada “A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas (Refica, ANPAE, 2018, pg. 7), organizada por Márcia Angela da S. Aguiar e Luiz Fernandes Dourado [Livro Eletrônico: http://www.anpae.org.br/BibliotecaVirtual/4-Publicacoes/BNCC-VERSAO-FINAL.pdf].
Essa BNCC tem sido o carro-chefe das políticas educacionais desenhadas pelo Ministério da Educação, especialmente após o impeachment da Presidenta eleita Dilma Rousseff. Impacta de forma direta as políticas direcionadas aos currículos escolares, à formação dos profissionais de educação, bem como os processos avaliativos nas escolas e sistemas de ensino. Ao secundarizar a articulação federativa, a institucionalização do Sistema Nacional de Educação e dada à concepção restrita de educação e currículo, centrada nas competências e habilidades, que estruturam a BNCC, direcionada para a educação infantil e ensino fundamental, se contrapõe a uma concepção crítica de direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento e, neste contexto, evidentemente, o Plano Nacional de Educação 2014-2024 vem sendo deixado de lado.
Para concluir esta breve reflexão, e para tentar colaborar com os cuidados necessários em relação ao diálogo a ser feito entre as nossas experiências curriculares prévias, a reorientação curricular que estamos pretendendo fazer, e considerar a BNCC que é tão recente, podemos ter como referência, entre tantas outras críticas possíveis, uma análise bastante contundente que foi feita pela Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação-ANPED, em 2015, durante o processo de discussão da BNCC que começou em 2013 e foi perdendo espaço e força no país. A maioria destas questões não foram resolvidas e, portanto, a BNCC foi lançada apressadamente em fins de 2017, sem resolver estes problemas – muitos, que se referem à própria Concepção de Educação, de Aprendizagem, de Currículo e de Avaliação. Daí eu aproveitar este texto para que as escolas do país possam ter algumas referências inicias, antes de elaborar o seu currículo com base na base. Certamente, estas não são as únicas nem as últimas críticas à BNCC, mas é um documento importante, necessário, para que a escola conheça e possa ter uma compreensão crítica pelos vários segmentos escolares. Você encontra este documento na íntegra, na internet, pelo seguinte endereço:http://www.anped.org.br/sites/default/files/resources/Of_cio_01_2015_CNE_BNCC.pdf/Acesso em 30/07/2019.
Este documento da ANPED, produzido pelo Grupo de Trabalho 12: Currículo, e com o apoio da ABdC/Associação Brasileira de Currículo”, que se manifestou em 2015, junto ao MEC/SEB, contrariamente ao documento orientador de políticas para Educação Básica, afirmou inicialmente o seguinte:
Nossa posição é sustentada no entendimento de que a desejável diversidade, fundamental ao
projeto de nação democrática expresso na Constituição Brasileira e que se reflete na LDB/1996,
não é reconhecida na proposta da BNCC, na medida em que nesta está subentendida a hegemonia de uma única forma de ver os estudantes, seus conhecimentos e aprendizagens, bem como as escolas, o trabalho dos professores, os currículos e as avaliações, imprópria à escola pública universal, gratuita, laica e de qualidade para todos. (..) Entendemos que o documento Base Nacional Comum Curricular apresenta, naquilo que Ítalo Dutra, Diretor de Currículos e Educação Integral da SEB/MEC, denomina "estrutura do documento e de seus fundamentos", uma descaracterização do estudante em sua condição de diferença, bem como da desumanização do trabalho docente em sua condição criativa e desconsideração da complexidade da vida na escola. A conversão do direito a aprender dos estudantes numa lista de objetivos conteudistas e atitudinais a serem aprendidos, retira deste direito seu caráter social, democrático e humano. Apesar das constantes críticas dos especialistas da área, constatamos que, ao longo destes últimos dois (2) anos, progressivamente, o MEC foi silenciando sobre os debates, avanços e políticas no sentido de democratização e valorização da diversidade, cedendo voz ao projeto unificador e mercadológico na direção que apontam as tendências internacionais de uniformização/centralização curricular + testagem larga escala + responsabilização de professores e gestores traduzido na BNCC e suas complementares e hierarquizantes avaliações padronizadas externas.
Como já viemos verificando em estudos e debates nacionais e internacionais, essa tríade orientada para os valores do mercado tem gerado, consequentemente, a desvalorização e privatização dos sistemas públicos de ensino e seus atores em diversas dimensões. (idem link indicado acima).
E depois disso, apresentou 9 motivos que colocam em evidência os vários problemas da BNCC, que podem ser localizados na internet (nota de rodapé 3), e versam sobre os seguintes aspectos: 1. Diversidade versus Uniformização; 2. Nacional como homogêneo: um perigo para a democracia; 3. Os entendimentos do Direito à Aprendizagem; 3. Conteúdo não é base; 5. O que não se diz de experiências internacionais; 6. Gestão democrática versus Responsabilização; 7. A Base e a avaliação (contribuição do Prof. Luiz Carlos de Freitas); 8. Desqualificação do trabalho docente: unificação curricular e avaliação externa; e, 9. Metodologia da Construção: pressa, indicação e indefinição.
Estas são apenas algumas críticas, dentre as tantas, feitas, por exemplo, pelos próprios membros do Conselho Nacional de Educação que aprovaram a BNCC e por três membros que reprovaram o documento e a proposta. Portante, estamos de uma BNCC que não foi consenso nem no Conselho Nacional de Educação da Época e que foi muitíssimo bem criticada pelos votantes.
Para concluir esta breve reflexão sobre a BNCC, e ao mesmo tempo incentivar processos de reorientação curricular pelas escolas, mas que incluam os docentes e representações dos diversos segmentos escolares na sua definição, numa perspectiva intertranscultural (PADILHA, Paulo Roberto. Currículo Intertranscultural: novos itinerários para a educação. São Paulo, Cortez, 2004)., apresento e finalizo indicando alguns princípios e valores, orientações gerais e práticas que podem ser levados em conta na construção do currículo da escola, que eu chamo de “Currículo Intertranscultural (idem), e com a própria análise crítica e interpretação da BNCC:
Eis alguns princípios e valores, orientações gerais e práticas que podem ser levados em conta na construção de um currículo intertranscultural, como resultado de todo o processo precedente de discussão do projeto, da proposta pedagógica, dos planos de ação, em diálogo com o currículo que se tem e com o currículo que escola quer ter:
Englobar, no conceito de currículo, todas as ações e relações desenvolvidas na escola, incluindo a sua organização democrática dinâmica, direta, participativa e representativa e aberta à comunidade escolar.
Tornar a escola significativa e alegre para a vida dos educandos e de todas as pessoas que nela convivem.
Valorizar a escola como espaço de construção individual e coletiva da ação pedagógica e das trocas intertransculturais.
Visar à formação permanente de todas as pessoas que participam e atuam direta ou indiretamente na escola, para o exercício da cidadania planetária.
Assumir uma postura dialógico-dialética e complexa diante da realidade, abrindo-se para toda manifestação de sensibilidade, expressividade, espiritualidade, do sentimento e do conhecimento humanos.
Questionar todo e qualquer discurso, informação, conhecimento e processo de ensino – e – aprendizagem que se autodenomine neutro ou que se apresente numa perspectiva homogeneizadora.
Valorizar o intercâmbio e o diálogo entre os grupos culturais e seu mútuo enriquecimento, questionar e buscar a superação de qualquer manifestações que pretenda, sob qualquer alegação, naturalizar o predomínio de uma cultura sobre a outra.
Trabalhar o conhecimento na escola com base nas relações e nas trocas intertransculturais e valorizar os Círculos de Cultura como espaços privilegiados para as mesmas.
Promover a superação de toda e qualquer lógica binária e analisar a multidimensionalidade do ser humano.
Criar novos contextos educativos para a integração criativa, cooperativa, solidária, emancipadora e humanizadora entre os diferentes sujeitos, grupos de pessoas e comunidades.
Posicionar-se frontalmente contra qualquer tipo de manifestação preconceituosa, etnocêntrica, violenta, que promova a desigualdade e a exclusão social.
Superar o modelo de controle da exclusão social por um Estado que “pilota” as políticas sociais como “tutelador” e não como gestor, alterando as formas de relação entre Estado educador e educação escolar.
Trabalhar os processos de reconstrução do conhecimento sempre visando à justiça social e à humanização da educação, estimulando a aprendizagem como forma de intercâmbio e partilha.
Respeitar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os princípios da Carta da Terra, bem como todos aqueles já consagrados nas cartas e nos documentos surgidos nas amplas discussões nacionais e internacionais, como demanda dos povos.
Sigamos dialogando sobre este artigo e sobre as temáticas nele tratadas. Sigamos juntos.

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